Experiência pessoal
O objetivo do blog NÃO é contar minha experiência pessoal, antes, ajudar a esclarecer algumas dúvidas sobre um tema em que não há, infelizmente, muita informação disponível na internet.
Mas, como sei que todo exemplo e experiência também pode, de certa forma, ajudar, eis aqui algumas informações sobre minha caminhada de quase dez anos pela Alemanha:
Sobre como tudo começou...
Como surgiu o interesse pela Alemanha?
Aos cinco anos. Sim, aos cinco anos!!! Estávamos arrumando os livros do papai na varanda e peguei um livro sobre bandeiras dos diferentes países. Sempre adorei bandeiras, mapas, dados geográficos... e pirei na bandeira da Alemanha Oriental. As cores, o martelinho... fui perguntar de quem era aquela bandeira e, ao saber que era da Alemanha, decidi que iria pra Alemanha algum dia :).
E quando comecei a aprender alemão?
Bom, meus pais já sabiam do meu interesse desde sempre pela Alemanha, mas me conduziram primeiro ao inglês e ao espanhol. Afinal, eu não iria à Alemanha tão cedo, já que não tínhamos parentes nem outros conhecidos por lá naquela época, há uns vinte anos atrás.
Então comecei de fato a aprender alemão já na faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará (UFC, Campus do Pici, Fortaleza), em 2000. O primeiro semestre fiz na Casa de Cultura Alemã de Fortaleza, mas as aulas diárias e o trânsito horrível logo depois (saía de lá para trabalhar dando aulas de Olimpíada e Específica de Biologia em colégios particulares) me fizeram trocar o curso de alemão da Casa de Cultura pelo do Poliglota, Instituto de Línguas tradicional de Fortaleza e, por sinal, excelente. E lá cursei do segundo ao sexto semestre de alemão; com o detalhe que cursava um semestre normal e depois fazia um intensivo, de forma que concluí o sexto semestre em dois anos.
Depois, já na Alemanha, cursei alemão em Berlim numa escola particular, a Hartnackschule, e saí com nível C1 inicial (correspondente ao C1.1 - geralmente, tem C1.1., C1.2 e C1.3, depois C2). Ainda em Berlim, fiz um curso de alemão para médicos estrangeiros, gratuito e oferecido pela Charité.
Fiquei um ano na Austrália e, em 2007, quando de volta na Alemanha e paralelamente ao Doutorado, fiz pela própria Universidade de Würzburg o nível C2.
Outro detalhe importante é que desde 2002 tive namorado alemão (não é o mesmo desde 2002, troquei em 2010, mas por outro alemão) e isso, obviamente, também ajuda.
Como e quando vim para a Alemanha pela primeira vez?
Foi em Outubro de 2002.
Saiu um estágio pela graduação (Secretaria de Assuntos Internacionais, SerNi) em Dermatologia na Universidade de Gießen. Mas, como já estava com namoradinho em Münster, troquei a universidade e fiquei 14 dias em Münster, na Enfermaria de Alergologia. Foi bom, mas eu não entendia tudo muito bem e só conseguia me comunicar em inglês.
No ano seguinte, fomos no verão para Münster novamente, com bolsa e amparo do DAAD (Deutscher Akademischer Austauschdienst) com um Professor da UFC (Dalgimar Beserra de Menezes) e dez colegas da graduação. Também ficamos por 14 dias. Dessa vez estagiei na Enfermaria de Doenças Autoimunes, também na Dermatologia.
Em 2004, através de um programa de Intercâmbio do DAAD, o UniBrAl, ganhei uma bolsa de 6 meses durante o Internato de Cirurgia na Charité, em Berlim. Desses 6 meses, fiquei 4 deles no Departamento de Cirurgia Dermatológica.
Depois, voltei por 3 meses para Fortaleza e pedi autorização especial da UFC para voltar e ficar mais 8 meses de Internato na Alemanha, já que tinha uma carta de aceite do Departamento de Pediatria e de Clínica Médica da Universidade de Münster. E assim foi.
Terminei Medicina em dezembro de 2005.
Enquanto esperava sair meu visto para a Austrália (antes é necessário ter a carta de aceite do hospital - no meu caso, Royal Perth Hospital, e passar com todas as notas acima de 7,0 na prova de inglês IELTS), onde queria começar a trabalhar, como Resident Medical Officer, na Emergência, em Perth, fiquei 3 meses no PSF e dando plantão no interior do Ceará.
Em 2006 passei 1 ano em Perth, na Austrália, como planejado.
Só que, em 2007, tive a oportunidade de fazer meu tão sonhado doutorado em Dermatoistopatologia na Alemanha, pela Universidade de Würzburg (link: https://opus.bibliothek.uni-wuerzburg.de/frontdoor/index/index/docId/2629).
Link do artigo publicado: https://www.hindawi.com/journals/jsc/2011/349726/.
Sem bolsa.
Depois de seis meses entre experimentos, estatística e primeira versão da tese, recebi o convite para fazer minha residência em Dermatologia na Universidade de Würzburg (recebi a tal carta de aceite, autorização provisória e regional para clinicar, e, quatro anos depois, a autorização nacional). Fiquei lá de 2007 a 2015, mas agora temos nosso próprio consultório em Bad Kissingen, uma cidade de serra e de médio porte no norte da Bavaria (Website: https://www.hautaerzte-badkissingen.de).
Durante a residência conheci meu atual marido.
Por que Dermatologia?
Escolhi fazer Dermatologia numa época em que ela ainda era uma especialidade "Patinho Feio", ninguém queria. Na época, lembro bem que ouvia aqui e acolá um deboche de algum colega de turma, bem no estilo "só vai tratar pereba e espinha", e mesmo de um professor da Faculdade ouvi o seguinte comentário: "por que vc vai gastar sua inteligência com Dermatologia? Pelo amor de Deus, faça outra especialidade!".
Mas, bem, o que de fato me motivou foi eu mesma ter tido uma acne severa no meio da faculdade. E o simples fato de, por isso, não me sentir levada a sério. Tipo, é só espinha, né? Um dia passa. Mas nunca tive muita acne na puberdade, tudo se tratava de um problema hormonal.
Dessa experiência dolorida, aprendi que nem tudo que é "simples" para os médicos também o é para os pacientes. Então passei a assistir aula de Dermato de semestres adiantados no meu tempo livre, e lia tudo que me caía nas mãos. Ainda durante a faculdade, li quase sete livros de Dermatologia no semestre que era disciplina regulamentar. Tentei fazer pesquisa com professores da Universidade, mas nenhum deles tinha interesse... Por exemplo, em 2003 quis fazer a tradução do DLQI (Dermatology Life Quality Index) para o português, tive até a autorização do autor Andrew Finlay da Irlanda por escrito, mas acredita que ninguém quis me orientar na época? Hoje em dia esse questionário DLQI, que mede o nível de qualidade de vida dos pacientes com doenças dermatológicas, é usado em todo o mundo!!!!
De tanto perturbar fui mandada para uma médica maravilhosa, a Dra. Andrea Pinheiro, do Hospital São José de Doenças Tropicais, e ficava com ela no ambulatório de pacientes com HIV e dermatoses. Com ela também apresentei um trabalho premiado sobre linfomas cutâneos ainda na Graduação.
Por que Dermatologia na Alemanha?
Porque, em um dos estágios que fiz em Dermatologia aqui, na Alemanha, vi que ela era bem mais ampla que a escola americana, a que o Brasil segue.
Sim, temos Flebologia, Proctologia, Alergologia, Doenças Autoimunes, Dermatoistopatologia (onde fiz meu Doutorado, com gratidão eterna ao Professor Elemir Macedo e Dra. Silvania da Unicamp, além de minha orientadora, Prof. Eva-Bettina Bröcker), Ultrassonografia de pele e linfonodos, Dermato-Oncologia (onde fiquei quase 60% da minha Residência), muita cirurgia Dermatológica (elegantes, precisas), Laser e estética, além da Dermatologia Clínica, que sempre achei encantadora.
Claro, que aqui praticamente não existe hanseníase ou leishmaniose, mas tive oportunidade de ver isso quando no Brasil.
Por isso também, a residência aqui dura 5 anos, não 3.
Além disso, aqui somos bastante estimuados a pesquisar e a publicar.
Aqui as listas do meus trabalhos publicados (meu sobrenome mudou nesse meio tempo, por isso duas listas ;): https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/?term=lidia+poppe; a outra lista, mais antiga, é: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/?term=lidia+frey.
Já no Internato, em Berlim, pude operar bastante na Dermatologia - até transplante alográficos de pele eu pude fazer.
Durante a residência, fui colocada desde o início, em 2007 no ambulatório de Estética, e ficava na enfermaria de Dermato-Oncologia, numa época que ainda não havia Enfermaria de Cuidados Paliativos. Então, a gente dava o diagnóstico, operava, fazia o acompanhamento, se aparecessem metástases dávamos a quimioterapia, e cuidávamos paliativamente.
Agora, no meu próprio consultório, trabalho bastante com Laser e Estética, mas tanto meu marido (também dermatologista, por sinal) como eu damos muita importância à Morfologia, à Histopatologia, à Dermatologia Clínica e Cirúrgica.
Além disso, meu pai teve um Melanoma, atualmente IIIC, em 2008. E eu sofri, tentando juntar Dermato, Cirurgião Oncológico, Hemato-Oncologista, no Brasil para acompanhá-lo. Aqui, paciente com Melanoma é acompanhado pelo Dermatologista. E pronto.
Isso me deu a certeza de estar no caminho certo.
Se eu pensei em fazer outra coisa que não fosse Dermatologia?
CLARO!
Bem no início da graduação, tinha interesse em Cardiologia. Participei, inclusive, de um projeto de extensão ligado à Medicina de Urgência e Cardiologia, o PERC , por longos 4 anos.
Link para quem quiser conferir: https://www.facebook.com/perc.ufc.1996?fref=ts
Daí surgiu a Psiquiatria. Mas confesso que tinha um certo medo dos pacientes... Talvez porque um tio esquizofrênico que sempre negou tratamento tenha tentado machucar meu pai, talvez por um paciente também com esquizofrenia ter segurado minha mão e tentado (sem sucesso!) me machucar numa aula prática durante a faculdade... Bom, nem sei dizer ao certo o motivo. Até hoje me interesso muito pela Psiquiatria, pela Filosofia, pela Antropologia, pelas linhas. Mas não, não conseguia conceber todo dia ir trabalhar com medo do meu paciente.
Quando já sabia que queria Derma, tive um flerte com a Medicina Tropical e com a Cirurgia Geral. Mas nada que tirasse a Dermatologia da minha mente e do meu coração.
Está em dúvida se quer seguir a Dermatologia?
Sugiro que estagie ou em um consultório, ou em um serviço de Dermatologia.
Porque, infelizmente, ainda existe muito preconceito com essa especialidade tão encantadora.
Por exemplo, uma grande amiga minha, quando estava ainda na faculdade de Medicina, teve a oportunidade de vir fazer um estágio aqui na Alemanha. Eu sugeri vir para a Derma, mas ela não queria vir de jeito nenhum "só ver pereba? tô fora!". Pedi para ela dar uma chance, e acabou que hoje em dia ela também é apaixonada por Derma, terminou seu Doutorado e está fazendo a Residência em Dermatologia na Alemanha.
Então, livre-se de preconceitos e experimente!
O que eu gostaria de te perguntar, então, se você não se importar, é o seguinte:
1. Como você compara sua experiência na Alemanha com a na Austrália? Onde as possibilidades de aceitação são maiores para um estrangeiro em cirurgia geral (ou no geral, se você não tiver essa informação tão específica)? Gostaria de saber sobre coisas do tipo: aceitação cultural, dificuldade em aprovação, qualidade do ensino e qualidade de vida (o que tu puder informar será útil! :)
2. Você tem alguma informação adicional que me auxilie a comparar os dois países em que você morou com os EUA?
Então sobre suas perguntas:
1. a) Trabalho: Austrália foi uma experiência formidável. Morei 1 ano em Perth e trabalhei como Resident Medical Officer (RMO). Recebia a cada 15 dias, praticamente nada de horas extras, hierarquia horizontalizada, excelente abertura para profissionais estrangeiros. Nós somos avaliados a cada 3 meses e de acordo com o desempenho temos o contrato renovado. O meu foi renovado, no entanto tive a oportunidade de fazer doutorado na Alemanha sobre tumores de pele e então fui pra Alemanha.
Na Alemanha, onde fiz 15 dos 18 meses de Internato, já sabia da hierarquia muito militar, horas extras a perder de vista (mas todas pagas!), financeiramente semelhante à Australia.
b) Estilo de vida: Austrália mais aberta, mais expansiva; no entanto, mais isolada. Como já havia morado na Europa, senti muita falta dessa "multiculturalidade" europeia, de literalmente estar perto de tudo. Mas na Austrália é tudo mais calmo, mais tranquilo, mais relaxado.
c) O decisivo em ambos os países para se trabalhar são as provas de idioma e a carta de aceite. Australia, IELTS (com média acima de 7 em todas as provas) e na Alemanha nível C1. Entrar na residência de cirurgia Geral, no entanto, é um pouco mais fácil na Alemanha (estão em falta! e não tem prova, só análise de currículo e entrevista) do que na Australia.
d) Aceitação de estrangeiros: aqui a Austrália fica na frente, mas por milímetros :)
Pessoalmente estou ultra feliz aqui e não me imagino mais na Austrália. Sou apaixonada pela Alemanha e super feliz como profissional e mamãe de dois filhinhos, com meu marido. Não troco minha vidinha aqui por nada! :)
2. Sim, coincidentemente minha melhor amiga de faculdade e outros três grandes amigos fizeram USMLE e permaneceram nos EUA. Então pelo relato deles: os EUA são receptivos a estrangeiros qualificados, e as provas não são fáceis, mas se vc se dedicar dá pra se sair muuuuuuuito bem. No início é tudo meio carne de pescoço, mas depois, como especialista, muitas portas se abrem rapidamente e o ganho salarial aumenta significativamente.
Enfim... analise e veja pra vc o que se encaixa mais nos seus objetivos.
Desejo muita sorte a vc! Qualquer coisa estamos aqui, podendo ajudar, avisa!
Lídia
Com qual nível de alemão você foi para a Alemanha? Teve que fazer muito tempo de intensivo aí para chegar ao C2? Vou começar o B2 agora, mas sei que até o C2 ou mesmo até o C1, o caminho é longo...
Eu vim com nível B2 para Alemanha. Já tinha começado o curso no Brasil, paralelo à Faculdade de Medicina... Fiz um teste de nível em Berlim (quando estava lá, na época do Internato) e entrei na fase 1 (de 3) do C1 em um curso de alemão particular (Hartnackschule); ainda em Berlim fiz um curso de alemão para médicos (excelente, por sinal, recomendo demais), na própria Charité.
No Doutorado, cursei paralelamente o C2 pela Universidade de Würzburg e terminei "todos" os níveis. Teve um intervalo nesse período porque fiquei um ano na Austrália, mas, no geral, diria que 9 meses para terminar C1-C2 (3 meses C1, 6 meses C2, porque fiz um curso especial de Gramática e Conversação integrada).
Bom, espero que possa ter te ajudado!
Qualquer coisa, estamos aí!
Abraço, Lídia